Biografia
Lygia Clark (Belo Horizonte, 1920 – Rio de Janeiro, 1988)
inicia seus estudos artísticos em 1947, no Rio de Janeiro,
sob a orientação de Roberto Burle Marx e Zélia
Salgado. Em 1950, Clark viaja a Paris, onde estuda com Arpad Szènes,
Dobrinsky e Fernand Léger. Nesse período, a artista
dedica-se à realização de estudos e óleos
tendo escadas e desenhos de seus filhos como temas. Após
sua primeira exposição individual, no Institut Endoplastique,
em Paris, no ano de 1952, a artista retorna ao Rio de Janeiro e
expõe no Ministério da Educação e Cultura.
Lygia Clark é uma das fundadoras do Grupo Frente, em 1954:
dedicando-se ao estudo do espaço e da materialidade do ritmo,
ela se une a Décio Vieira, Rubem Ludolf, Abraham Palatnik,
João José da Costa, entre outros, e apresenta as suas
“Superfícies Moduladas, 1955-57” e “Planos
em Superfície Modulada, 1957-58”. Estas séries
deslocavam a pintura para longe do espaço claustrofóbico
da moldura. É o que Lygia queria como linha-luz, como módulo
construtor do plano. Cada figura geométrica projeta-se para
além dos limites do suporte, ampliando a extensão
de suas áreas. Lygia ainda participa, em 1954, com a série
“Composições”, da Bienal de Veneza –
fato que se repetirá, em 1968, quando é convidada
a expor, em sala especial, toda a sua trajetória artística
até aquele momento.
Em 1959, integra a I Exposição de Arte Neoconcreta,
assinando o Manifesto Neoconcreto, ao lado de Amilcar de Castro,
Ferreira Gullar, Franz Weissmann, Lygia Pape, Reynaldo Jardim e
Theon Spanudis. Clark propõe com a sua obra, que a pintura
não se sustenta mais em seu suporte tradicional. Procura
novos vôos. Nas “Unidades, 1959”, moldura e “espaço
pictórico” se confundem, um invadindo o outro, quando
Clark pinta a moldura da cor da tela. É o que a artista chama
de “Linha Orgânica”, em 1954: a superfície
se expande igualmente sobre a tela, separando um espaço,
se reunindo nele e se sustentando como um todo.
As obras querem ganhar o espaço. O trabalho com a pintura
resulta na construção do novo suporte para o objeto.
Destas novas proposições nascem os “Casulos,
1959”. Feitos em metal, o material permite que o plano seja
dobrado, assumindo uma busca da tridimensionalidade pelo plano,
deixando-o mais próximo do próprio espaço do
mundo. Em 1960, Lygia cria a série “Bichos”:
esculturas, feitas em alumínio, possuidoras de dobradiças,
que promovem a articulação das diferentes partes que
compõem o seu “corpo”. O espectador, agora transformando
em participador, é convidado a descobrir as inúmeras
formas que esta estrutura aberta oferece, manipulando as suas peças
de metal. Com esta série, Clark torna-se uma das pioneiras
na arte participativa mundial. Em 1961, ganha o prêmio de
melhor escultura nacional na VI Bienal de São Paulo, com
os “Bichos”.
Lygia Clark deixa de lado a matéria dura (a madeira), passa
pelo metal flexível dos “Bichos” e chega à
borracha na “Obra Mole, 1964”. A transferência
de poder, do artista para o propositor, tem um novo estágio
em “Caminhando, 1964”. Cortar a fita significava, além
da questão da “poética da transferência”,
desligar-se da tradição da arte concreta, já
que a “Unidade Tripartida, 1948-49”, de Max Bill, ícone
da herança construtivista no Brasil, era constituída
simbolicamente por uma fita de Moebius. Esta fita distorcida na
“Obra Mole” agora é recortada no “Caminhando”.
Era uma situação limite e o início claro de
num novo paradigma nas Artes Visuais brasileiras. O objeto não
estava mais fora do corpo, mas era o próprio “corpo”
que interessava a Lygia.
A trajetória de Lygia Clark faz dela uma artista atemporal
e sem um lugar muito bem definido dentro da História da Arte.
Tanto ela quanto sua obra fogem de categorias ou situações
em que podemos facilmente embalar; Lygia estabelece um vínculo
com a vida, e podemos observar este novo estado nos seus "Objetos
Sensoriais, 1966-1968”: a proposta de utilizar objetos do
nosso cotidiano (água, conchas, borracha, sementes), já
aponta no trabalho de Lygia, por exemplo, para uma intenção
de desvincular o lugar do espectador dentro da instituição
de Arte, e aproximá-lo de um estado, onde o mundo se molda,
passa a ser constante transformação.
Em 1968 apresenta, pela primeira vez, no MAM-RJ, "A Casa é
o Corpo", uma instalação de oito metros, que
permite a passagem das pessoas por seu interior, para que elas tenham
a sensação de penetração, ovulação,
germinação e expulsão do ser vivo. Nesse mesmo
ano, Lygia muda-se para Paris. O corpo dessexualizado é apresentado
na série “Roupa-Corpo-Roupa: O Eu e o Tu, 1967”.
Um homem e uma mulher vestem pesados uniformes de tecido plastificado
e capacetes que encobrem os seus olhos: o homem, veste o macacão
da mulher; e ela, o do homem. Tateando um ao outro, são encontradas
cavidades. Aberturas, na forma de fecho ecler, que possibilitam
a exploração tátil, o reconhecimento do corpo:
“os fechos são para mim como cicatrizes do próprio
corpo”, diria a artista, no seu diário.
Em 1972, é convidada a ministrar um curso sobre comunicação
gestual na Sorbonne. Suas aulas eram verdadeiras experiências
coletivas apoiadas na manipulação dos sentidos, transformando
estes jovens em objetos de suas próprias sensações.
São dessa época as proposições “Arquiteturas
Biológicas, 1969", “Rede de Elástico, 1974",
“Baba Antropofágica, 1973" e “Relaxação,
1974". Tratam de integrar arte e vida, incorporando a criatividade
do outro e dando ao propositor o suporte para que se exprima. Em
1976, Lygia Clark volta definitivamente ao Rio de Janeiro. Abandona,
então, as experiências com grupos e inicia uma nova
fase com fins terapêuticos, com uma abordagem individual para
cada pessoa, usando os “Objetos Relacionais": na dualidade
destes objetos (leves/pesados, moles/duros, cheios/vazios), Lygia
trabalha o “arquivo de memórias” dos seus pacientes,
os seus medos e fragilidades, através do sensorial.Ela não
se limita apenas ao campo estético, mas sobretudo ao atravessamento
de territórios da arte. Lygia Clark desloca-se para fora
do sistema do qual a arte é parte integrante, porque sua
atitude incorpora, acima de tudo, um exercício para a vida.
Como afirma Lygia: “Se a pessoa, depois de fizer essa série
de coisas que eu dou, se ela consegue viver de uma maneira mais
livre, usar o corpo de uma maneira mais sensual, se expressar melhor,
amar melhor, comer melhor, isso no fundo me interessa muito mais
como resultado do que a própria coisa em si que eu proponho
a vocês” (Cf. O Mundo de Lygia Clark,1973, filme dirigido
por Eduardo Clark, PLUG Produções).
Em 1981, Lygia diminui paulatinamente o ritmo de suas atividades.
Em 1983 é publicado, numa edição limitada de
24 exemplares, o “Livro Obra", uma verdadeira obra aberta
que acompanha, por meio de textos escritos pela própria artista
e de estruturas manipuláveis, a trajetória da obra
de Lygia desde as suas primeiras criações até
o final de sua fase neoconcreta. Em 1986, realiza-se, no Paço
Imperial do Rio de Janeiro, o IX Salão de Artes Plásticas,
com uma sala especial dedicada a Hélio Oiticica e Lygia Clark.
A exposição constitui a única grande retrospectiva
dedicada a Lygia Clark ainda em atividade artística. Em abril
de 1988, Lygia Clark falece.
Lygia Clark hoje
Vivemos num mundo midiático. Deixamos, aos poucos, de ter
contato de primeira pessoa com o mundo objetivo. Mudamos de canal,
falamos ao celular e sacamos dinheiro através de forças
poderosas invisíveis.O mundo virtual, sem limites, vai tomando
o lugar do mundo físico em nossas vidas. Trabalhamos, convivemos
e nos divertimos por meio de telas, interfaces que nos dizem o que
fazer e nos guiam aonde queremos chegar.Perturbados com a velocidade
deste novo mundo, compartilhamos nossas loucuras por meio de redes
e mídias sociais, buscamos forças na força
invisível do divino – religiões, seitas, rituais
– e acordamos todo dia em dívida com a informação
que prolifera sem parar.
As forças invisíveis do mundo online podem nos trazer
grande liberdade (virtual), mas podem também nos oprimir:
vivemos com medo de inimigos igualmente invisíveis: vírus
(de computador ou não), bactérias, assaltantes, terroristas.
Vivemos trancados em locais seguros, mantendo contato com todo o
planeta por janelas eletrônicas.
Oprimidos, com medo e confusos, sentimos necessidade de nos expressar:
berramos gritos de guerra em torcidas, nos exibimos em webcams,
falamos de nós mesmos por horas em chats e transformamos
o corpo em outdoor de nossas opiniões.Sutilmente loucos,
procuramos alívio instantâneo em bebidas místicas
como o daime, abusamos de drogas, lícitas ou não,
e dançamos frenéticos ao ritmo de tambores (Samba,
Candomblé, Afroreggae, Stomp). Chegamos a pintar a face (manifestações
de rua, estádios esportivos, carnaval). Enfim, tentamos simular
a vida dos ancestrais, que viveram num mundo mais simples, fácil
de entender: bastava alimentar e proteger a tribo.Ou seja, o primitivo,
hoje, nos dá alívio.
Lygia sabia disso. Seus pensamentos mais herméticos guardavam
este segredo: a arte precisava estar a serviço da libertação
do ser humano que hoje existe em células, comunidades, perfis
online.Verdadeiramente livre, Lygia esteve a frente de seu tempo,
hoje fica claro. Compartilhou ao transformar o corpo do outro no
objeto de sua arte muito antes da web 2.0, em que a ordem do dia
é compartilhar.
A auto decretada não-artista deu o objeto da arte na mão
de seu interlocutor, como em “Caminhando”, e estabeleceu
que a “arte é o seu ato”. Fundou a arte participativa,
interativa e compartilhada desde então. Lygia destravou as
portas do inconsciente através de sua arte e propunha isso
como manifestação artística transcendental.
Objetos sensoriais e relacionais, entre muitos outros artefatos,
abriam um canal direto com o primitivo interior (self, no jargão
de Lygia), criando um estado de auto-conhecimento revelador e, por
isso, libertador.
O mundo de Lygia Clark é hoje o antídoto para o veneno
da modernidade. Faz do contato físico real a revelação
do eu e do outro. É mais catártico e legítimo
que mil palavras ditas na terapia psicanalítica clássica.
Faz do contato humano o abrigo que buscamos no mundo virtual e que,
em verdade, lá não temos.
Resetar Lygia Clark é restartar o mundo. Resetar o mundo
é restartar Lygia Clark.
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